O homem que sabe servir-se da pena, que pode publicar o que escreve e que não diz a seus compatriotas o que entende ser a verdade, deixa de cumprir um dever, comete o crime de covardia, é mau cidadão. Por Júlio Ribeiro.

Amílcar Cabral, o braço armado da emigração - Por Luiz Andrade Silva

Crônicas da Terra Longe

Luiz Andrade Silva

Chiado Editora, Lisboa - 2015

Luiz Andrade Silva é autor, e estudioso da espiritualidade universal, mas é simultaneamente personagem ativo das vivências e fatos que relata, analisa e critica, com o peso e à medida que lhe conferem a sua vasta experiência de vida e o apetrechamento cultural que aperfeiçoou.


AMÍLCAR CABRAL, O BRAÇO ARMADO DA EMIGRAÇÃO

Amílcar Cabral nasceu sob o signo da emigração cabo-verdiana, a 12 de Setembro de 1924 em Bafatá, Guiné-Bissau. É filho de Juvenal Cabral e de Iva Pinhel Évora, ambos naturais de Cabo Verde. O pai, Juvenal Cabral, (Santiago 1889-1951), professor e homem de cultura, frequentou ainda criança, em Portugal, o Seminário em Viseu, para onde partiu aos oito anos de idade, mas acabou por regressar a Cabo Verde em 1906 vindo a concluir os estudos no Seminário-Liceu de São Nicolau. Foi contemporâneo de Oliveira Salazar no Seminário de Viseu. Conta-se que Oliveira Salazar dizia que eram os filhos do seu colega que o combatiam em África. Juvenal Cabral, que mais tarde se revela um excelente jornalista e escritor pan-africanista, não chega a terminar os estudos no Seminário por não possuir vocação eclesiástica.

Em 1911, emigra para a Guiné-Bissau e trabalha primeiramente nos serviços da Fazenda e na Alfândega antes de abraçar definitivamente o ensino público. Foi professor em Cacine, Buba, Bambadinca e em Bafatá, onde nasceu Amílcar Cabral. Ficou profundamente ligado à Guiné, cuja memória veio a transmitir aos filhos, Amílcar e Luís Cabral. Forjou laços de amizade com os chefes locais, de que viria a beneficiar o filho durante a luta de libertação. Segundo Luís Cabral, Amílcar Cabral, “ao fundar com os seus primeiros companheiros o Partido Africano da independência da Guiné e Cabo Verde, estava em certa medida a dar uma dimensão nova e transcendente aos sentimentos que lhe foram inculcados pelo nosso querido pai” (Luís Cabral, Crónica da Libertação, pág. 18).

Da sua mãe, Iva Pinhel Évora, natural da Ilha da Boavista, pouco se fala, ou melhor, não se tem debruçado sobre a importância fundamental que ela teve na educação e formação de Amílcar Cabral. Mulher corajosa e trabalhadeira, como são todas as mulheres da ilha da Boavista, graças ao trabalho quotidiano e de costureira, conseguiu não só acompanhar o filho durante a sua infância e juventude como também exercer um papel determinante nos seus estudos primários (Santiago) e liceais em São Vicente. Trata-se duma enorme injustiça não falar da importância de Nha Iva no destino heroico de Amílcar Cabral. Ele possuía uma adoração que chegava à paixão pela sua mãe. Quando encontrava qualquer patrício de regresso da Guiné-Bissau, durante a longa história da luta de libertação, procurava sempre ter informações dela e muitas vezes chorou pelo facto de viver longe da mãe, que tanto se sacrificara para fazer dele o homem que era. Deu o seu nome à sua primeira filha. Foi Nha Iva que levou Amílcar Cabral para São Vicente a fim de frequentar o Liceu Gil Eanes, onde pôde beneficiar de excelentes professores, que foram determinantes na sua formação cultural e posterior consciencialização política.

Ela merece a justa consagração da nação, não somente como mãe do herói Amílcar Cabral mas também como o exemplo da mulher cabo-verdiana, pela sua coragem e dedicação na formação dos seus filhos e indireta influência na libertação de Cabo Verde. Nha Iva merece uma particular distinção em Cabo Verde porque simboliza a heroicidade da mulher emigrante cabo-verdiana. E foi graças às amizades granjeadas e pelas suas recomendações, que Amílcar Cabral foi bem recebido nas comunidades emigradas, especialmente no Senegal, onde obteve o apoio necessário para empreender a luta de libertação. Se a Achada Falcão, em Santiago, se orgulha de ter albergado Amílcar Cabral na sua infância, ninguém pode negar a Amílcar a sua parte da ilha da Boavista, terra da sua mãe. Foi com grande dignidade que ela recebeu em Bissau, onde vivia com os outros filhos, a notícia da morte do Amílcar Cabral, tendo mandado rezar uma missa pelo filho. Quando partia para Guiné Conacry para assistir ao funeral do seu heroico filho, teve de enfrentar mais uma vez os olhares da PIDE e seus esbirros, o que fez com toda a dignidade.

A infância e adolescência

Da infância de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau pouco se fala. O pai Juvenal Cabral regressa a Cabo Verde em 1932 e a mãe Iva um pouco mais tarde. As relações entre Cabo Verde e a costa africana, e em especial a da Guiné-Bissau, foram sempre constantes, primeiramente estabelecidas pelos “lançados”, “como agentes de comércio, intermediários dos armadores europeus nos negócios com as populações ribeirinhas” (António Carreira). Estas trocas comerciais vieram a reduzir-se com a abolição do comércio triangular de escravos, a partir de 1815, pelo Congresso de Viena. Entretanto, a trágica fome de 1861-1863 provocou não só

uma emigração para as plantações de São Tomé e Príncipe como também para a Guiné-Bissau, onde muitos cabo-verdianos passaram a dedicar-se à agricultura e ao comércio. António Carreira, historiador cabo-verdiano, que viveu muitos anos na Guiné-Bissau, no seu livro Migrações nas Ilhas de Cabo Verde escreve:

“Homens de Santiago, do Maio, da Brava, de Santo Antão, tinham-se fixado em Salimquenhê, Farim-Velho, Bananto, Maninhã, Gandú, Iomfarim, Canjambari, Jumbémbém, etc., uma parte considerável já com permanência contínua de 40 a 50 anos. Uns tinham chegado com as suas famílias; outros, isolados, constituíram família, ligando-se a mulheres da terra, de camadas nativas, mestiças (ou não) e cristianizadas”. Conclui ainda António Carreira que “a ideia de que o cabo-verdiano foi, na Guiné (e em outros pontos), um colonizador no mau sentido do termo, deve ser revista à luz de uma documentação básica e sem preconceitos apriorísticos”.

Para Alfredo Margarido, um dos maiores especialistas da questão colonial portuguesa, os cabo-verdianos foram, pelo contrário, agentes da modernização na Guiné-Bissau, mesmo se nem todos tiveram a consciência de ultrapassar a visão colonial do regime português.

Com oito anos, Amílcar Cabral regressa a Cabo Verde, acompanhando o pai e os irmãos. Somente mais tarde a mãe regressa à Praia onde retoma a educação do seu filho. Com a idade de 12 anos, segue para São Vicente a fim de frequentar o Liceu Infante D. Henrique, no momento em que a ilha do Porto Grande continuava a sofrer os efeitos da crise económica de 1929. Um acontecimento singular marca a presença do jovem Amílcar Cabral em São Vicente: a manifestação contra a fome conduzida pelo carpinteiro Ambrósio, que num discurso messiânico denunciava a fome, clamando por justiça, e que Gabriel Mariano poetizou de Capitão Ambrósio “dos vivos e ultrajados // dos pobres e humilhados”, num poema que circulou principalmente durante a luta de libertação. Atrás desta manifestação estava a elite cultural mindelense guiada por Baltasar Lopes e pelos intelectuais à volta do Notícias de Cabo Verde, como Manuel Ribeiro de Almeida, proprietário e diretor desse jornal, e também tutor de Amílcar Cabral. Nele, para além de Augusto Miranda, António Aurélio Gonçalves, colaborava também Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral. Foi graças à ação de Manuel Ribeiro de Almeida que foi instalada a primeira tipografia independente em São Vicente, com o nome de Sociedade de Tipografia e Publicidade, Ltda., onde se passaram a editar todos os jornais e revistas de Barlavento, inclusive a revista Claridade.

A “revolução” do Ambrósio foi duramente reprimida. Ambrósio foi condenado a cinco anos na cadeia penal em Angola, enquanto os comerciantes reunidos à volta da Sociedade Comercial de Barlavento foram punidos com o imposto de 3% ad-valorem sobre produtos importados.

Em 1936, um grupo de intelectuais cabo-verdianos, liderados por Baltasar Lopes, lança a revista de letras Claridade, que vai marcar a vida cultural cabo-verdiana. Nessa altura, Amílcar Cabral frequentava o Liceu Infante D. Henrique em São Vicente. Mas, em 1937, esse Liceu foi mandado encerrar por ordem do governo de Salazar. Os intelectuais cabo-verdianos, dirigidos pelo Dr. Adriano Duarte Silva, que aliás tinha feito regressar Baltasar Lopes a São Vicente, consegue obrigar as autoridades portuguesas a reabrir o Liceu em Cabo Verde mas agora com o nome de Gil Eanes, que se mantém até à independência de Cabo Verde.

Amílcar Cabral foi uma figura pública do Mindelo: futebolista na Académica do Mindelo, pertenceu à Academia Cultivar dos estudantes do Liceu Gil Eanes à volta do grupo Certeza, e se não chega a colaborar na Claridade, os seus colegas da Certeza, como Teixeira de Sousa, Arnaldo França, Nuno Miranda, virão a ser colaboradores da revista, na continuidade do pensamento dos seus fundadores.

Aliás, Baltasar Lopes disse em 1986, no cinquentenário da revista Claridade, que o pensamento caridoso não se tinha estagnado e continuava sempre vivo e aberto à participação de todos. A qualidade do ensino no Liceu Eanes, onde pontuavam professores cabo-verdianos de renome, como Adriano Duarte Silva, Baltasar Lopes, António Aurélio Gonçalves e Alberto Leite, foi importante na formação da geração de Amílcar Cabral. Não se pode ignorar o papel da maçonaria na consciencialização dos cabo-verdianos e, em especial, dos seus direitos cívicos, evidenciada na luta contra o estatuto do Indigenato que tanto a República (1910-1926) como o regime de Salazar quiseram impor em Cabo Verde, enquanto os nativistas-nacionalistas, como Eugénio Tavares, Luís Loff Vasconcelos, Abílio de Macedo, Torquato Fonseca, entre outros, exigiam um estatuto de ilhas adjacentes como Açores e Madeira, para o arquipélago.

Amílcar Cabral possuía a consciência social das suas origens: conviveu com todas as camadas sociais da sociedade mindelense e, ainda nos anos sessenta, era lembrado por muitos desportistas locais. Sendo a Académica do Mindelo um clube da elite mindelense, onde normalmente jogavam os estudantes do Liceu Gil Eanes, ele procurou nunca se separar dos clubes populares como o Mindelense.

Pude ler, durante o período colonial, uma carta que, ainda jovem e num gesto de estima e confiança, enviou ao dirigente e desportista do Mindelense, José Figueira, manifestando o seu reconhecimento pela sua ação a favor da cultura e do desporto em Cabo Verde.



Em São Vicente havia também, ao contrário das outras colónias portuguesas, uma classe proletária nas companhias inglesas que “davam o braço à liberdade”, na feliz expressão do malogrado poeta Ovídio Martins. Em 1913 foi criado o primeiro sindicato de trabalhadores em Cabo Verde, de que dá conta o jornal A Voz de Cabo Verde, através de artigos de Eugénio Tavares e de Pedro Monteiro Cardoso, e que veio a ser extinto com a Constituição Portuguesa de 1933. Amílcar Cabral privou de perto com os sindicalistas mindelenses das companhias inglesas, sobretudo com os seus líderes, que acabariam também por romper com a Igreja Católica, por esta estar associada ao regime colonial fascista. Muitos desses sindicalistas aderiram depois ao Protestantismo, como Augusto Miranda, ou ao Racionalismo Cristão, através do professor João Miranda, em cuja casa chegou a residir Amílcar Cabral. De notar que os protestantes em Cabo Verde produziram uma plêiade de escritores nacionalistas, como Teobaldo Virgínio, Osvaldo Osório, Renato Cardoso, Gilberto Évora, António Leite, etc. O grupo dos racionalistas cristãos emigrou para Dacar, no Senegal, onde podia exercer livremente o direito de culto. O grupo integrou os movimentos sindicalistas africanos, vindo mais tarde a criar um movimento de libertação, o MLGC, que depois aderiu ao PAIGC. Em alguns textos humanísticos de Amílcar Cabral denota-se a influência dos textos racionalistas cristãos da autoria do grande pensador brasileiro Luiz de Sousa. (Luiz de Sousa, Ao encontro de uma Nova Era). Amílcar Cabral é hoje o presidente astral de uma casa racionalista cristã em São Vicente.

Mas foram as fomes dos anos quarenta que marcaram profundamente Amílcar Cabral e determinaram o seu engajamento nas transformações económicas e políticas em Cabo Verde. A crise agrícola de 1942 teria levado o próprio pai, Juvenal Cabral, à miséria. E por isso se diz que a influência do pai, proprietário agrícola na ilha de Santiago, que tinha perdido quase todos os bens durante as secas e fomes de 1942, foi determinante na decisão de ir a Portugal fazer os estudos de engenheiro agrónomo. Do mesmo modo, as fomes de 1902-1903, programadas em benefício dos roceiros de São Tomé e Príncipe, por trágico que isso pareça, proporcionavam a estes uma mão-de-obra cabo-verdiana, que mais se assemelhava ao regresso à escravatura, na expressão de Eugénio Tavares. O governo português encontrou a mesma solução em 1942, reabrindo os contratos para as roças de São Tomé e Príncipe, de onde uma grande parte não regressava devido às doenças tropicais. E, para impedir a emigração para o Senegal, onde se podia encontrar melhores salários, a administração colonial passou a exigir passaporte a um preço elevado e, como se não chegasse, carta de chamada. Essa emigração forçada para São Tomé, denunciada desde o princípio do século XX por Sena Barcelos, Eugénio Tavares e Luís Loff de Vasconcelos, produziu uma literatura de denúncia contra esse fadário cabo-verdiano, protagonizada por caridosos como Baltasar Lopes e Jorge Barbosa, e escritores como Teixeira de Sousa, Luís Romano, Gabriel Mariano, Kaoberdiano Dambará, Ovídio Martins, Terêncio Anahory Silva e Onésimo Silveira, e assumida por compositores como B. Leza, Jotamont, Abílio Duarte, Lela de Maninha, Rodrigues Peres, Manuel d’Novas, Zeferino Soares, citando apenas estes. Por isso, no preâmbulo dos estatutos do PAIGC, fundado a 19 de Setembro de 1956, por imigrantes cabo-verdianos na Guiné-Bissau, se proclama “o regresso imediato dos emigrantes de São Tomé e Príncipe após a independência”, o que, trinta e três anos depois da independência, ainda não aconteceu.

Partida para Portugal

Com 21 anos, parte para Portugal. Graças ao apoio de Baltasar Lopes e também de Luís Terry, que na altura era o reitor do Liceu Gil Eanes, consegue uma bolsa de estudo para frequentar o curso de agronomia em Portugal. Virá a ser um aluno brilhante no plano universitário, tendo recusado um lugar de professor assistente no Instituto de Agronomia. Entretanto dá aulas privadas, participa nas atividades da Casa dos Estudantes do Império associado a personalidades como Mário de Andrade, Francisco Tenreiro e Marcelino dos Santos.

Nas suas congeminações intelectuais ressalta a preocupação com a revisão da História da África, escrita por colonialistas europeus que negavam à África o direito à autoria da sua própria História. Terminado o curso superior de agronomia, segue para a Guiné onde, a par e passo, através de investigações no interior do país, consegue conhecer o homem e a cultura guineenses, apoiando também grupos desportivos e culturais e antevendo as linhas de ação do projeto da união Guiné-Cabo Verde, no quadro da independência, já fora da influência cultural do seu pai, Juvenal Cabral.

A Conferência de Bandung em 1954, na Indonésia, constitui uma data histórica para o continente africano. Os países colonizados pela Inglaterra e a França decidem avançar para a autonomia e independência. Se as duas maiores potências coloniais aceitam dialogar com os líderes das suas colónias africanas, o mesmo não acontece com Portugal que, no quadro da sua teoria de um Portugal pluricontinental, nega o direito de autonomia às suas colónias. É

então a partir da eclosão dos movimentos de libertação, que Portugal reforça o seu dispositivo militar em África e instala a sua famigerada PIDE em todos os territórios, de modo a estrangular as vozes de libertação dos povos colonizados, a começar pelos seus artistas e intelectuais. A repressão, em especial a da PIDE, foi tão violenta que o efeito foi o contrário, pois a violência dos atos mais não fez do que reforçar a consciencialização dos povos que aspiravam à independência.

Embora os cabo-verdianos tivessem sido excluídos do estatuto de Indigenato, graças à luta dos nacionalistas nativistas, como Eugénio Tavares (Brava, 1868-1930), José Lopes, (São Nicolau 1872, Mindelo 1962) e Luís Loff de Vasconcelos (Brava? – Mindelo 1923), as condições de vida dos cabo-verdianos não eram melhores do que as dos outros povos das colónias africanas. Na prática, o cabo-verdiano era igual a qualquer outro indígena e, como prova a ida dos trabalhadores cabo-verdianos para as roças de São Tomé, não beneficiava de um estatuto diferente do dos indígenas de Angola e Moçambique. Até final dos anos cinquenta, os cabo-verdianos que possuíam o curso complementar dos liceus não podiam entrar como oficiais no exército ou na marinha portuguesa.

Somente depois de a guerra se instalar nas colónias africanas de Portugal, e devido ao súbito acréscimo de efetivos, é que se alargou aos originários das colónias portuguesas o acesso a postos de sargentos e oficiais milicianos no exército português.

De Londres e sobretudo da França, chegavam a Portugal os ecos da luta pela libertação dos países africanos. De Paris, por intermédio de Mário de Andrade, se recebia a revista Présence Africaine, defendendo a filosofia da negritude conduzida por Leopold Senghor e Aimé Césaire, que, na continuidade dos pan-africanistas como Du Bois ou Georges Padmore, relançavam a ideia do pan-africanismo. Ainda mais radical que Aimé Césaire, o martinicano Frantz Fanon, que aderiu à luta de libertação da Argélia, publicava dois livros fundamentais

para Amílcar Cabral: Peau Noir, Masque Blanc e Os Condenados da Terra. Da América, recebia Amílcar Cabral, de amigos emigrantes, como John Peter Santos (seu colega no Liceu em São Vicente) cartas e documentos das Nações Unidas a exigirem a autodeterminação das colónias de Portugal.

Os estudantes africanos da Casa do Império, em Portugal, seguiam de perto a evolução dos africanos em Paris, muitos deles chamados a fazer parte do governo francês, como Houphouet Boigny ou Leopold Senghor, enquanto, no espaço português, a situação dos quadros e intelectuais continuava bloqueada simplesmente por uma questão de pele. E isso motiva as fugas organizadas dos estudantes e quadros africanos da Casa dos Estudantes do Império para França.

Mário de Andrade foi o primeiro a fixar-se em França e, ligado à editora Présence Africaine, vai desempenhar um papel teórico importante junto das novas gerações africanas residentes em Portugal, chegando mesmo a ser mais tarde presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).A 19 de Setembro de 1956, Amílcar Cabral, de passagem por Bissau, numa viagem de Angola para Portugal, reúne-se com alguns emigrantes cabo-verdianos, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Luís Cabral (seu irmão), Abílio Duarte e Elisée Turpin (guineense), e lança a fundação do Partido Africano da independência que mais tarde será chamado Partido Africano para a independência da Guiné e Cabo Verde. E por isso soe dizer-se que foram os emigrantes cabo-verdianos que inventaram no exterior a nação cabo-verdiana e lançaram as bases da independência de Cabo Verde.

Em 1957, o pan-africanista N’krumah, torna-se presidente do Ghana. N’Krumah encoraja Sekou Touré a exigir a independência imediata à França, o que acontece e determina a independência dos outros países colonizados por esta potência colonial em 1960. E, em 1960, serão todos os países da África Ocidental Francesa que acederão à independência com um novo projeto de estados africanos, com novas fronteiras, denunciando os acordos de Berlim de 1885, em que a Europa partilhara a África sem consultar os africanos. Assim, o projeto de unidade Guiné Bissau-Cabo Verde, idealizado por Amílcar Cabral, encontra um maior sustentáculo junto da comunidade internacional, dos pan-africanistas africanos e dos emigrantes cabo-verdianos na Europa, África e Américas.

Em 1960, Amílcar Cabral deixa Portugal para entrar na luta política e militar contra o regime colonial português. Em Paris, no Hôtel de la Paix, rua de Blanville (onde devia já existir uma placa comemorativa), encontra-se com Mário de Andrade (Angola), Viriato da Cruz (Angola) e Marcelino dos Santos (Moçambique). Inicia uma atividade diplomática que o leva a Tunis, onde é criada a Frente Revolucionária Africana (Frain), vai a Londres e ali conhece Basil Davidson, instalando depois a direção do PAIGC na Guiné Conacry.

Por Paris passam depois Aristides Pereira, Pedro Pires, Abílio Duarte e tantas figuras da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, à procura de armas políticas para combater o colonialismo.

Para além da livraria Présence Africaine, a maioria dos nacionalistas africanos lembra-se da livraria-editora de François Maspero, no Quartier latin, onde se podia comprar a um preço módico todas as obras políticas sobre as lutas dos países do Terceiro Mundo. François Maspero merece que os países africanos independentes deem o seu nome a uma rua ou uma avenida, pois a sua contribuição foi muito importante para a formação teórica de muitos combatentes da liberdade. Aliás, foi F. Maspero que editou o primeiro livro de Amílcar Cabral em França, L’arme de la Théorie, em 1968, e mais tarde a sua obra-póstuma em dois volumes.

A adesão da emigração à luta de libertação

1. Estados Unidos da América

Desde os meados do século XIX, surgiram movimentos autonomistas em  Cabo Verde, graças à influência dos deportados independentistas brasileiros e também portugueses. A abolição do comércio triangular de escravos fez Cabo Verde perder todo o interesse por parte da potência colonial, embora os esforços do ministro das Colónias, o marquês de Sá da Bandeira, que, para além de se ter revelado um convicto abolicionista, propunha uma política de desenvolvimento das colónias, em especial, do desenvolvimento do Porto Grande de São Vicente, que nunca foi concretizado. A contragosto de muitos intelectuais portugueses, como Eça de Queirós, que propunha a venda das colónias, pelo que foi brindado com um grande artigo do nacionalista-nativista Eugénio Tavares, intitulado Nós não somos Filipinos, referindo-se à venda das Filipinas pelos espanhóis aos Estados Unidos. Na zona leste dos Estados Unidos, em Rhode Island e Massachusetts, vive uma histórica comunidade cabo-verdiana, constituída desde os meados do século XIX, que teve e tem ainda um papel importante na economia, assim como na cultura e na vida política cabo-verdiana.

As ideias pan-africanistas chegadas da América, nos princípios do século XX, influenciaram pensadores nativistas-nacionalistas, como Eugénio Tavares, José Lopes, Luís Loff de Vasconcelos e Pedro Cardoso, que chegaram a defender a ideia da independência de Cabo Verde. Cabe a Eugénio Tavares esta frase célebre, publicada em 1900 no seu jornal Alvorada, editado em New Bedford: “África aos africanos. A África terá o seu Monroe”, referindo-se à doutrina Monroe que proibia a intervenção da Inglaterra no continente americano. O poeta José Lopes, em 1899, diria que não morreria sem ver aquelas ilhas independentes. Pedro Monteiro Cardoso, em vários poemas dedicados à África, cita Aníbal e Amílcar Barca, como se o nome de Amílcar estivesse predestinado para libertar Cabo Verde e a África, como aconteceu.

Os emigrantes cabo-verdianos da América não trouxeram para Cabo Verde somente dólares, também trouxeram valores sociais, culturais e políticos que modificaram a paisagem humana cabo-verdiana, libertando-a da servidão herdada da escravatura. Os filhos dos emigrantes da América foram os futuros quadros de Cabo Verde e a geração da Claridade está intimamente ligada à América, como explica Baltasar Lopes ou Teixeira de Sousa nas entrevistas concedidas a Michel Laban. Da América veio também a experiência das lutas dos trabalhadores, da luta contra o racismo, das greves nas fábricas, o que vai dar os seus frutos a partir de 1913 nas greves dos trabalhadores das companhias inglesas em S. Vicente, de que Eugénio Tavares dá conta no jornal A Voz de Cabo Verde:

A greve! Que coisa formidável, assombrosa, que não é essa força de operário levantando-se, quebrando os grilhões da disciplina, para exigir pão para os filhos, ouro para florir a felicidade na fronte pálida da mulher adorada”.

O movimento associativo operário também recebe a influência dos emigrantes da América: no jornal A Voz de Cabo Verde, em 1914, Pedro Cardoso consagra um poema aos operários mindelenses fundadores da Associação 1° de Dezembro, cujo título é esclarecedor dado o seu carácter programático: Unidos Avante» (ver Folclore Cabo-verdiano de Pedro Monteiro Cardoso): Unidos, avante! Operários! – diz Marx, o mestre venerando Que a vossa redenção tem de ser conquistada Por vós somente, não brandindo lança ou espada, Mas unindo-vos sempre e vos associando!... Ora escutai a voz austera do vidente E pondo-lhe em efeito aviso sapiente.

A colónia cabo-verdiana nos Estados Unidos levanta-se de novo nos anos sessenta para apoiar a luta de libertação de Cabo Verde. Amílcar Cabral, nas suas viagens às Nações Unidas, pôde criar vários núcleos de militantes independentistas, que o acompanham nas “démarches” junto das Nações Unidas no sentido de obter apoios políticos e materiais na luta de libertação. É de destacar figuras como John Peter Santos, seu antigo colega no Liceu de São Vicente, Norberto da Cruz (Groguinha), em Brooklyn, e em outras cidades como New Bedford, Boston, Providence, etc., que criaram várias organizações de apoio ao PAIGC.

2. Brasil

Havia também uma emigração muito antiga para o Brasil, em Santos, no Estado de São Paulo. Maninho Burgo, cabo-verdiano, radica-se no porto de Santos, sendo um dos fundadores do Racionalismo Cristão, associado aos portugueses Luiz de Matos e Luiz Alves Thomas. Maninho Burgo chegou a regressar a Cabo Verde em 1911 para implantar o Racionalismo Cristão, mas a sua tentativa não foi gorada de sucesso e teve de regressar ao Brasil. Quando surgiram os movimentos de libertação das colónias portuguesas, no Brasil foram também criados grupos de apoio à independência de Cabo Verde. Em São Paulo, a União dos Cabo-verdianos Livres do Brasil escrevia em 1960 aos cabo-verdianos do MLGC do Senegal pedindo uma aliança para o combate para a independência de Cabo Verde. Segundo Gabriel Fonseca, um dos fundadores do MLGC, a União chegou a propor a sua deslocação ao Senegal para participar na luta de libertação.

No Brasil foi publicado o romance Famintos, de Luís Romano, considerado a maior denúncia do colonialismo português, que circulou nas comunidades cabo-verdianas do estrangeiro, que o faziam entrar clandestinamente em Cabo Verde.

Ainda no Brasil, Luís Romano, associado a Artur Vieira (poeta e teatrólogo), fundou a revista Morabeza, que deu a conhecer novos escritores cabo-verdianos.

3. Senegal

Em Dacar, cidade vizinha de Cabo Verde, vivia uma grande comunidade cabo-verdiana, constituída desde o final do século XIX, princípios do século XX.

A maior parte das construções em pedra na capital senegalesa foram construídas por cabo-verdianos, a começar pelo seu porto, o palácio do governo, entre  muitas outras. Uma mão-de-obra muito apreciada pelos franceses, a ponto de, em 1903, segundo Sena Barcelos, o governador Paulo Cid impor a concessão obrigatória do passaporte a um preço elevado para impedir a emigração cabo--verdiana para aquele país e obrigar os trabalhadores cabo-verdianos afamados a aceitarem o “contrato” para as roças de São Tomé e Príncipe (onde possuía ações), das quais poucos voltavam com saúde para prosseguir uma vida normal.

Mas foi nos anos quarenta, graças ao desenvolvimento do porto de Dacar e a presença francesa, que muitos cabo-verdianos emigram para o Senegal, tal como acontecera com a emigração para a América. Por iniciativa própria dos cabo-verdianos, o mesmo aconteceu em relação ao Senegal. Com efeito, muitas vezes clandestinamente, os capitães cabo-verdianos saíam em barcos cabo-verdianos dos portos de Cabo Verde em direção a Dacar, onde eram acolhidos pelos amigos e familiares. Excelentes profissionais como mecânicos, pedreiros,

carpinteiros, pintores, partem para o Senegal onde abrem as suas próprias empresas ou trabalham nas companhias francesas. As mulheres também emigram e trabalham nas famílias francesas, na restauração ou na costura; foi assim que no fim da colonização algumas mulheres cabo-verdianas foram para a França com as respectivas patroas, criando assim o primeiro núcleo cabo-verdiano em Paris. Em nenhum país africano o cabo-verdiano foi tão bem acolhido e a sua integração se fez plenamente, no respeito pelas diferenças culturais e religiosas, como acontecera no Senegal. O mesmo não acontecia nas colónias portuguesas devido ao facto de não se ter aplicado aos cabo-verdianos o estatuto de Indigenato.

A lei do Indigenato somente seria abolida nas colónias portuguesas em 1961, quando quase todos os países africanos já eram independentes e a luta de libertação havia começado nas colónias portuguesas.

Também no Senegal os cabo-verdianos tomam contacto com o sindicalismo e com os movimentos independentistas africanos, onde se consciencializam dos dramas da colonização, o que os leva à criação do MLGC, unindo cabo-verdianos e guineenses, e que mais tarde se funde no PAIGC. Este terá um escritório em Dacar mas é na Guiné-Conacry que fixa o seu secretariado-geral e lança a partir dali a maior parte das operações contra as tropas portuguesas.

Essa comunidade cabo-verdiana de Dacar, para além de ter ajudado fortemente as famílias em Cabo Verde durante os anos quarenta e cinquenta do século XX, teve um papel importante na luta de libertação nacional. Aqui prestamos homenagem aos nossos marinheiros e capitães de ilhas e costas, como Alberto Pancrácio, Crisanto Lopes, Herculano Vieira, Manuel d’Novas, Duca de Nho Pitra, João de Lala, que em pequenos palhabotes como Novas d’Alegria, Neptuno, Santa Luzia, Maria Sony, Diana Lima, faziam as viagens entre Cabo Verde e o Senegal, trazendo mantimentos e vestuário para as famílias residentes no arquipélago. Eram os tripulantes desses barcos, pouco mais que “cascas d’ovo”, que levavam a correspondência clandestina para Cabo Verde, especialmente para Baltasar Lopes, considerado o ícone dos cabo-verdianos, e para os amigos que necessitavam de saber da evolução política para a independência dos países africanos vizinhos.

Quando Amílcar Cabral chega a Dacar, já lá se encontrava o irmão Luís Cabral e os militantes do MLGC à sua espera para dirigir a luta de libertação. Dacar passa a ser o ponto nevrálgico da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde, onde os militantes têm apoio da comunidade. Paulo Faria, José Andrade (Djosa de nha Chica), Mané Faial, Augusto Couto, Custódio Couto, Gabriel Fonseca, Honoré, Henry Labary, Luís Barreto e o seu amigo francês Vial, sem contar com o apoio de tantas e tantas mulheres que aderem à luta de libertação, entre as quais nha Luizinha (mãe do Lantinhas), uma passionária pela independência de Cabo Verde. Jovens são recrutados para a luta e enviados para os países comunistas para a formação militar. Por Dacar vão passar, para além de Amílcar Cabral e Luís Cabral, Aristides Pereira, Abílio Duarte, Pedro Pires e mais tarde Silvino da Luz, que consegue fugir à atenção dos militares portugueses numa passagem pela Nigéria, de onde foge para a capital senegalesa.

Também as atividades sociais, culturais e desportivas marcaram profundamente a presença cabo-verdiana em Dacar. Houve teatro, grupos folclóricos, clubes desportivos de futebol e cricket, boxe, grupos carnavalescos. Dali partiram, em 1965, para a Holanda, os elementos que formaram o grupo Voz de Cabo Verde, constituído por Luís Morais, Morgadinho, Toi de Bibia, Bana, Jean da Lomba, que internacionalizou a música cabo-verdiana. Passaram ainda pelo Senegal artistas de variedades como Eddy Moreno, Djosinha (irmão da Ofélia), Armando Russo e tantos outros grandes músicos da nova geração, como os do Cabo Verde Show, Jacqueline Fortes, etc.

Em 1960, aquando da independência do Senegal, o governo português, para espanto de todos, abre uma embaixada em Dacar, mais com o objetivo de seguir de perto as atividades políticas do PAIGC ou de preparar um diálogo com esse partido. A derrota da corrente autonomista no governo português, que visava substituir Salazar, foi eliminada pelos militares chefiados pelo general Kaulza de Arriaga, favorável à guerra contra os movimentos de libertação. Essa embaixada será fechada em 1963, com a decisão da OUA (Organização de Unidade Africana) em romper as relações diplomáticas com Portugal, devido aos seus crimes contra os nacionalistas africanos.

A presença dos cabo-verdianos em Dacar diminuiu a partir dos fins dos anos sessenta. Hoje, existem várias colónias de emigrantes cabo-verdianos oriundos do Senegal, em França, Holanda, Estados Unidos, etc. Muitos também regressaram a Cabo Verde depois da independência do país em 1975.

Europa: a emigração para a Holanda

Para a Europa, a emigração começou nos fins dos anos cinquenta com a chegada dos primeiros cabo-verdianos a Roterdão, na Holanda. Portugal não era, até os fins dos anos sessenta, um país de emigração dos cabo-verdianos. Havia ali um núcleo de cabo-verdianos oriundos de famílias abastadas do Arquipélago, normalmente constituído por desportistas e estudantes universitários. Somente a partir de 1968 começa a imigração cabo-verdiana para Portugal através da Igreja Católica, que vai recrutar no interior de Santiago trabalhadores para Portugal a fim de substituir a mão-de-obra portuguesa emigrada para a França e a Alemanha.

Com a emigração cabo-verdiana para a Holanda e depois para a França, o PAIGC encontra um apoio fundamental na Europa, onde recruta militantes políticos e homens para a luta de libertação. Nos fins dos anos cinquenta, um pequeno grupo de cabo-verdianos, de que se destacam Eduardo de Bia d’Ideal, Djunga de Biluca, Constantino Delgado, Domingos Paps e outros, descobre o porto de Roterdão, que necessitava de marinheiros. Lançam um apelo para Cabo Verde — que atravessava uma grande crise económica —, para a emigração de cabo-verdianos para a Holanda, apelo esse que vai encontrar um grande apoio das forças vivas, dos comerciantes e da sociedade em geral. Estas organizam-se para enviar jovens para a Holanda, em resposta à forçada emigração para São Tomé. Homens de negócios se associam para conceder empréstimos a jovens que desejam emigrar para aquele país. Este movimento não afeta apenas marítimos e operários, pois até os estudantes preferem emigrar a ter de fazer a guerra colonial.

Assim, a Holanda não somente recebe homens do mar, mas também jovens estudantes à procura de novas práticas de vida e acima de tudo da democracia. Criam-se grupos musicais, associações para apoiar a luta de libertação e a cultura cabo-verdiana; abrem-se casas de discos para divulgar a nossa música; é fundada a Associação Cabo-verdiana, que publica o seu jornal Nós Vida, para defender os direitos dos emigrantes e também a luta de libertação (e que precisa de ser reeditado pois foi o único órgão informativo nas comunidades cabo-verdianas a apoiar a luta de libertação).

Em 1964, o PAIGC já recruta combatentes em Roterdão, Fameck (França) e, mais tarde, em Lovaina (Bélgica), em Paris, em Marselha, em Roma, nos países nórdicos, ou melhor, em todos os lugares de emigração cabo-verdiana na Europa.

Os emigrantes passavam a assumir um duplo combate: de um lado, trabalhando duramente para investir na economia em Cabo Verde e, de outro, combatendo ao lado do PAIGC na luta de libertação armada. Além disso, devido às partidas e regresso dos emigrantes, que levavam documentos, livros, informações e criavam grupos de militantes pela independência, no coração da nação, a luta no interior do país tomou novos contornos. Em todas as comunidades cabo-verdianas do mundo, o PAIGC, muitas vezes graças à ação pessoal de Amílcar Cabral, criou representações e grupos de militantes que faziam um trabalho de consciencialização junto dos trabalhadores. Na Holanda, graças ao apoio do editor de discos

Djunga de Biluca, o PAIGC chegou a produzir dois discos (33 tours) para a sua campanha política: Protesto e Luta (poesia) e um disco com o cantor revolucionário Baltasar Januário de Barros, “Nhô Baltas”, sem contar com os discos do Voz de Cabo Verde e do Humbertona. Congregaram-se assim os compositores mais engajados na luta pela libertação do homem cabo-verdiano, como Eugénio Tavares, B. Leza, Lela de Maninha, Jotamont, Manuel de Novas, Abílio Duarte, Valdemar Lopes da Silva, Manuel Faustino, etc. Chegou-se mesmo a vender em Cabo Verde um disco do Voz de Cabo Verde, sem a devida capa, dado o comentário sobre as músicas abordando a questão colonial da autoria de Jorge Eduardo Barbosa (Zó Barbosa), ao tempo estudante na Universidade de Lovaina.

Embora não tenha havido luta armada em Cabo Verde, não se pode negar a adesão dos cabo-verdianos à luta de libertação nacional. Os emigrantes viviam em países democráticos, com um nível de vida social, económica e cultural muito avançado e desejavam uma outra política que levasse Cabo Verde ao desenvolvimento.

O surgimento de um movimento para a independência, liderado por uma figura prestigiosa de Cabo Verde como Amílcar Cabral, fez renascer novas esperanças na emigração intelectual quanto à possibilidade de sucesso da independência de Cabo Verde.

A morte de Amílcar Cabral e a emigração

Em quinze anos de emigração para a Europa, os emigrantes não somente investiram na economia como também formaram muitos quadros para a independência.

Os emigrantes continuam a investir em Cabo Verde, participando no desenvolvimento do país, mas a independência ainda não permitiu a criação de estruturas de diálogo para a defesa dos seus direitos e deveres. A morte de Amílcar Cabral foi a maior perda histórica que aconteceu à emigração cabo-verdiana, pois a partir da independência, e sem a ação tutelar e clarividente do antigo líder, os emigrantes passaram a ser vistos como pessoas perigosas para o regime instituído, influenciadas pelo capitalismo, pelo que nem deviam ter o direito de voto. Esta injustiça está bem patente nas disposições da Constituição de Cabo Verde e nas leis eleitorais, que negam ao emigrante o direito de votar nas eleições municipais, quando ele tem os seus investimentos e os seus interesses na terra natal.

Se a morte não tivesse atraiçoado Amílcar Cabral, a política de Cabo Verde para a emigração talvez fosse diferente desde a independência. Certamente que há necessidade de se consultar os arquivos do PAIGC sobre a relação estabelecida entre o Amílcar Cabral e as várias diásporas cabo-verdianas dispersas pelo mundo, pois os emigrantes atuais do PAICV, ex-PAIGC, nada têm do imaginário dos militantes emigrantes da luta de libertação de Cabo Verde.

Amílcar Cabral foi sem dúvida o homem que pensou em unir os homens e também os países. A sua teoria da pequena burguesia, que ele aconselhava a suicidar-se como classe, tinha por objetivo unir todas as forças para o desenvolvimento de Cabo Verde e da Guiné. E a sua filosofia da democracia, baseada na base da crítica e da autocrítica, que constituiu o fundamento da luta de libertação, marcou profundamente várias gerações e, especialmente, os jovens das segundas gerações. Se hoje pouco se fala das análises teóricas de Amílcar Cabral, a verdade, como disse o poeta, é que Amílcar Cabral não morreu porque as independências ali estão e haverá sempre homens e mulheres para defenderem o seu legado histórico. Mesmo nos grandes momentos difíceis da luta armada, nunca assumiu um papel de um ditador chefe, como muitas vezes exige a guerra de libertação. Foi muitas vezes acusado pela imprensa ocidental de comunista, por receber apoios dos países de Leste. Homem pragmático, culto e inteligente, pôde extrair do marxismo alguma lição, como sendo a única teoria que apoiava a libertação da classe trabalhadora e a luta anticolonial. O anticomunismo primário de muitos dos seus detratores, pelo contrário, o engrandeceu, quando pretendiam destruir a sua imagem política. Fez uma guerra de libertação diferente da dos cubanos, aliás, teve divergências teóricas com Che Guevara, procurando aproveitar todas as correntes nacionalistas de Cabo Verde e da Guiné.

Entretanto, após a independência, foi estabelecido na Guiné e em Cabo Verde um regime de partido único que entrou em colisão com os emigrantes que viviam em países democráticos e pluripartidários, onde beneficiavam de direitos cívicos, que não lhes eram concedidos no país por que lutaram, o que esteve na base de várias revoltas dos emigrantes.

A sua morte teve enormes e diferentes consequências para os dois países nascidos da sua liderança ideológica, não obstante terem conseguido o seu desiderato ‒ a independência. O projeto da unidade Guiné-Cabo Verde não mais avançou, a democracia participativa na base da crítica e da autocrítica foi silenciada e, finalmente, apareceu o golpe de 14 de Novembro de 1980, que pôs termo à unidade Cabo Verde-Guiné. Este golpe de Estado foi a segunda “morte matada” da memória de Amílcar Cabral. Os guineenses atribuíram todas as culpas aos cabo-verdianos pelo insucesso da sua política económica e pelos crimes cometidos contra os seus nacionais. A verdade é que a Guiné, sem os cabo-verdianos, não é a Guiné melhor para os guineenses que eles propunham ou imaginavam.

Os cabo-verdianos, quaisquer que tenham sido os cargos que desempenharam na Guiné, na Administração Portuguesa ou no PAIGC, como escreveu o insuspeito Alfredo Margarido, foram os agentes sociais e culturais da modernidade na Guiné-Bissau.

A teoria da unidade de Amílcar Cabral também consistia em unir os cabo-verdianos vivendo no interior e no exterior de Cabo Verde. A unidade não era somente solidariedade, mas também dignidade na defesa das causas do homem cabo-verdiano. Não era somente unidade interilhas, mas também interilhas e diáspora, porque a problemática da emigração não é algo exclusivo aos emigrantes, afeta Cabo Verde por inteiro e isso tem de ser incutido na sociedade cabo-verdiana, desde a escola primária aos políticos da nação. E essa própria

unidade entre ilhas e entre o país e a emigração falhou desde a independência, porque não foram criadas as estruturas de diálogo que proporcionem discussão e debate, não somente sobre os problemas da emigração, mas de todos os problemas nacionais. Como dizia Eugénio Tavares, o cabo-verdiano não emigra para a América somente por razões mandibulares.

Os emigrantes oriundos do meio rural esperavam do engenheiro agrónomo, Amílcar Cabral, uma grande reforma agrária baseada em tecnologias agrícolas modernas, em escolas profissionais, em estágios em países com características iguais às nossas e que soubesse integrar os emigrantes e os seus capitais. Hoje, após uma violenta tentativa falhada de reforma agrária que marcou profundamente a sociedade cabo-verdiana, a agricultura em Cabo Verde está completamente abandonada, importando-se quase tudo para o nosso consumo, quando temos emigrantes que desejariam investir na agricultura. Se Amílcar Cabral fosse vivo, estamos seguros de que a nossa agricultura seria outra coisa. Aqui, o próprio partido traiu o pensamento de Amílcar Cabral que, mesmo durante a luta colonial, ia reformando a agricultura na Guiné-Bissau. Quando disse que a luta de libertação era um ato de cultura, queria demonstrar que a própria luta poderia determinar novas reformas sociais, económicas e culturais.

A morte de Amílcar Cabral teve também consequências negativas nas atividades sociais e culturais da nossa emigração: o movimento associativo fraquejou totalmente nas comunidades emigradas. Não se formaram agentes culturais e associativos para a emigração; os filhos dos emigrantes não beneficiaram de um intercâmbio cultural ou de bolsas de estudo; não se abriram centros culturais e escolas para os emigrantes; não se organizam voos charters para facilitar o regresso dos emigrantes e familiares; em suma, pensa-se que o emigrante é rico e que não precisa de Cabo Verde. Falta ainda uma política de informação para a emigração, com a criação de rádios e até mesmo de uma televisão nacional para a emigração.

Em todas as campanhas eleitorais promete-se a criação do Conselho das Comunidades e depois tudo fica em letra morta. O emigrante precisa de ser integrado na sua freguesia, na sua câmara, na sua ilha e depois no todo nacional, com direitos e deveres. Como compreender a sua exclusão nas eleições municipais se ele investe tudo o que possui na sua terra natal e fica, com a negação desse direito, privado da possibilidade de fazer as escolhas mais consentâneas com a visão dos seus interesses? Os presidentes de câmara vêm à emigração pedir ajudas, os emigrantes participam em geminações, promovem a cultura nacional em todos os lugares do mundo e não têm direito de voto na aldeia onde nasceram e onde tudo investem. E o pior é que nenhum dos partidos políticos ousa abordar este tema, o que nos faz pensar que o emigrante é um indivíduo indesejado na terra mãe. No dia em que a emigração começar a pensar que pode fazer greve da transferência das economias, talvez venha a conquistar os seus direitos.

Mais uma vez afirmamos que se Amílcar Cabral estivesse a dirigir os destinos da nação cabo-verdiana, a política de emigração seria outra, não porque ele nasceu sob o signo da emigração na Guiné, mas porque, pela sua experiência, pela sua formação humanista, o pacto firmado com os emigrantes seria eternamente respeitado. Estamos convencidos de que mais do que nunca os emigrantes sentem a dolorosa morte de Amílcar Cabral. Quando os jovens das segundas gerações gritam que “Cabral cá morrê!”, este grito confirma que a sua filosofia de libertação continua a trazer esperanças aos jovens cabo-verdianos, que desejam manter firme a sua caboverdianidade e orgulhar-se de possuírem na sua história exilar uma grande figura de dimensão internacional.

Fazer perdurar a lição de Cabral

Todos os anos, tanto pelo 20 de Janeiro como pelo 5 de Julho, a emigração interroga Amílcar Cabral. O líder da libertação precisa de ser estudado e devidamente compreendido e estendido a todas as comunidades cabo-verdianas. Talvez com a ajuda da leitura das obras de Amílcar Cabral (que aliás necessitam de ser reeditadas, pelo menos em França) possam os cabo-verdianos criar a política de emigração com que tanto os emigrantes como Amílcar Cabral sonharam.

E agora que Cabo Verde possui uma universidade pública, por que não financiar mestrados sobre Amílcar Cabral ou ainda sobre aspectos da nossa história completamente ignorados como a emigração e a escravatura? Como compreender que nenhum dos companheiros de luta ousou escrever sobre a figura do imortal líder? Por isso, saudamos o angolano António Tomás, pela biografia de Amílcar Cabral – O Fazedor de Utopias, sem as quais nem a Guiné e nem Cabo Verde seriam independentes.

Estas datas sagradas festejadas em todos os lugares da emigração significam festejar o combate dos emigrantes que também são outros heróis da pátria. Talvez tenham sido os primeiros a lutar e a morrer por Cabo Verde. Mas quantos emigrantes têm sido esquecidos nas condecorações do 5 de Julho em Cabo Verde?

Não haverá em Paris, em Fameck, na Itália, na Holanda, nos Estados Unidos, no Brasil, na Suécia, na Argentina, no Senegal, em Angola e em São Tomé e Príncipe emigrantes que mereciam ser homenageados nestas datas sagradas?

A Fundação Amílcar Cabral não deve ficar acantonada a um pequeno espaço no plateau da Praia. Esta fundação precisa de uma visão mais alargada do pensamento de Amílcar Cabral, “despartidarizando” a sua figura heroica de forma a tornar-se pertença de toda a nação; precisa de criar representações nas comunidades, a fim de alargar os estudos e promover a sua obra nas comunidades e no estrangeiro. Para que a memória de Amílcar Cabral seja respeitada por todos os cabo-verdianos, a Fundação Amílcar Cabral tem de estar lá onde vivem cabo-verdianos, dentro ou fora de Cabo Verde, com debates, conferências, edição das suas obras, etc. Os dois volumes dos textos de Amílcar Cabral, editados em França por François Maspero, esgotaram há dezenas de anos e precisam de ser reeditados.

A expressão “Cabral cá morrê” resiste ao tempo e continua bem viva no coração e no imaginário dos emigrantes. A figura de Amílcar Cabral ultrapassou as fronteiras da Guiné e Cabo Verde e das comunidades cabo-verdianas dispersas pelo mundo. Hoje, é uma figura mundial, respeitada e que faz de Cabo Verde um país admirado e enaltecido em todo o mundo. A decisão do presidente da Câmara de Saint-Denis, na região parisiense, de homenagear Amílcar Cabral, no dia 5 de Julho, dia da independência de Cabo Verde, dando o seu nome a uma das artérias principais da cidade, situando-o ao lado de heróis africanos, como Patrice Lumumba e Nelson Mandela, honra não só os emigrantes cabo-verdianos mas todos os emigrantes que lutaram pela libertação dos seus países.

Creio que foi Alfredo Margarido que disse que o PAIGC teria sido o braço armado da Claridade. E eu respondo que Amílcar Cabral foi também o braço armado da emigração cabo-verdiana.

Amílcar Cabral, o braço armado da emigração - Por Luiz Andrade Silva

Bibliografia

▪Cabral, Luís. Crónica da Libertação. Lisboa: O Jornal, 1984.

▪Cardoso, Pedro. Folclore Cabo-verdiano, Paris: Solidariedade Caboverdiana, 1983.

▪Carreira, António. Migrações nas Ilhas de Cabo Verde, Lisboa: Universidade Nova, 1978.

▪Kwame Kondé, Kaoberdi pa dianti, introdução de Luiz Silva, Paris: Associação dos         Trabalhadores Cabo-verdianos em França, 1974.

▪Lopes, Baltasar, Chiquinho, Arles, Actes Sud/UNESCO, 1990.

▪Margarido, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa.

Lisboa: A regra do jogo, 1980.

▪Monteiro, Félix. Eugénio Tavares Pelos Jornais... Praia: Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, 1997

▪Monteiro, Félix. Eugénio Tavares Poesia Contos e Teatro. Praia: Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco, 1996.

▪Monteiro, Félix. Eugénio Tavares Viagens tormentas Cartas e Postais. Praia: Instituto

de Promoção Cultural, 1999.

▪Nós Vida, jornal da Associação Cabo-verdiana da Holanda.

▪Oliveira, João Nobre. A Imprensa Cabo-verdiana 1820-1975. Macau: Fundação

Macau, 1998.

▪Silveira, Onésimo. La prise de conscience dans la littérature du Cap Vert. Paris,

Présence Africaine, 1968.

▪Tomás, António. O Fazedor de Utopias (uma biografia de Amílcar Cabral). Lisboa: Tinta-da-China, 2007.