Crônicas da Terra Longe
Luiz Andrade Silva
Chiado Editora, Lisboa - 2004
Iniciamos esta viagem pela poesia de Cabo Verde com os poetas que viveram o período monárquico constitucional e o período republicano que termina com o golpe de estado de 1926 e que leva mais tarde Salazar ao poder. Eugénio Tavares (1867/1930) é sem dúvida uma das figuras mais marcantes dessa época. Morreu de pé contra o fascismo. No ano de 1900 publica na solidão da sua ilha da Brava o poema Hinos, que teve o seu tempo e que continua actual, porque está acima dos partidos e somente comprometido com Cabo Verde. Desde a independência a questão do Hino Nacional não tem conseguido unir os cabo-verdianos à volta de um texto que une toda a Nação e que fosse cantado em todos os lugares, dentro e fora de Cabo Verde, pelas nossas crianças, pelos nossos trabalhadores no seu exercício diário ou pelas nossas mulheres quando ninam o sono dos seus filhos. Da independência (5 de Julho de 1975) a 1990, Cabo Verde e a Guiné-Bissau defenderam o mesmo hino nacional da autoria de Amílcar Cabral, mas com o golpe de Estado de Nino Vieira a 14 de Novembro de 1981, que deu lugar a um novo partido político em Cabo Verde (o PAICV), vimos-nos despojados do Hino. Lamentamos que o actual Governo não possa exigir do Governo da Guiné-Bissau que elimine o nome de Cabo Verde da sigla do PAIGC. A instalação da democracia em Cabo Verde, em 1990, que levou o Movimento para a democracia ao poder, permitiu a instituição de um novo hino nacional mas que não encontrou um consenso nem ao nível do MPD nem evidentemente do PAICV. Foi Félix Monteiro, nosso homenageado, que num dos números da revista Raízes publicou o poema Hinos, de Eugénio Tavares, que indirectamente nos fazia uma chamada de atenção necessária para a importância deste poeta na história cultural e política de Cabo Verde. Compreendemos que face aos conflitos à volta dos textos dos hinos, defendidos pelos partidos, ele propunha um poema que vinha de um homem maior na história de Cabo Verde, que dera ao crioulo e à nossa música a sua grande dignidade, que mais que ninguém defendeu os interesses de Cabo Verde e dos seus emigrantes, desde os fins do século passado. O soneto de Eugénio Tavares seria certamente o hino necessário para unir todos os cabo-verdianos à volta de Cabo Verde, pondo termo às querelas políticas suscitadas pelo hino nacional:
Hinos
Revolução ou morte! Eis o nosso dever
A paz é
já, um crime; e morte infame a vida!
E se havemos de - irmãos! ...um dia apodrecer
No ventre
desta terra infausta, tão querida
Se a
Pátria santa ao mal temos que ver
rendida
Se a aurora do combate um dia há-de romper
Se a
lágrima, e o suor, e o sangue hão-de correr,
Avermelhando
o mar e a terra envilecida.
E se
hão-de, num futuro incerto, derramá-los,
Filhos do
nosso amor às mãos dos mercenários,
Pátria e
filhos - irmãos!...tentemos nós salvá-los!
Morte ou
revolução! Que, não há cobardia
Que
iguale a de legar a filhos os calvários
De nomes com brasões de lodo e vilania!
A emigração para a América do Norte, onde Eugénio Tavares esteve por duas vezes, a primeira para conhecer in loco as actividades da comunidade cabo-verdiana e a segunda para fugir à repressão das forças coloniais, permitiu aos intelectuais cabo-verdianos entrarem em contacto com os movimentos pan-africanistas, aos quais se associaram, entre outros, Pedro Monteiro Cardoso (1883/1942), Juvenal Cabral (1889/1951). Tornam-se também defensores das ideias socialistas, aliás Pedro Cardoso faz referências a Karl Marx e à ideologia marxista num poema dedicado aos sindicalistas mindelenses em 1913. Em 1922 dedica um poema pan-africanista aos congressistas africanos reunidos em Lisboa. Mas é a sua evocação ao passado glorioso do Egipto, a defesa dos valores culturais africanos, que o faz um dos maiores poetas pan-africanistas cabo-verdianos, se não do mundo de língua portuguesa, uma referência na consciencialização política em Cabo Verde, nos anos sessenta, saudado tanto por Onésimo Silveira, no seu extraordinário ensaio político Consciencialização na Literatura Caboverdiana (Présence Africaine, Outubro de 1968) como na obra poética de Kaoberdiano Dambara, pseudónimo do advogado Felisberto Vieira Lopes, e ainda Mário Fonseca, Francisco Fragoso, e outros. Recorde-se que em 1954 Manuel Duarte, em Portugal, relança o debate sobre a africanidade de Cabo Verde na revista coimbrense Vértice, publicando um ensaio intitulado Caboverdianidade e Africanidade, chamando a atenção dos intelectuais cabo-verdianos para a importância da África em Cabo Verde, mais tarde retomado por Amílcar Cabral e pelos intelectuais cabo-verdianos, com a fundação do PAIGC em 1956.Vejamos o poema.
Ao Egipto
Egipto! Berço da Isis lacrimosa,
Do sacro
Nilo de caudais enchentes:
Pátria
dos Faraós armipotentes
E da
Hipatia e Cleópatra formosa!
Se hoje a
Tebas de portas cem, famosa,
Envolve o
manto de areais candentes,
Ninguém
inda os enigmas transcendentes
Desvendar
pôde à Esfinge portentosa!
Ergue-te,
pois! e o jugo anglo-otomano
Sacudindo,
proclama soberano
A tua
independência ante às nações!
Que no
halo envolto de uma glória infinda,
Do alto
dessas Pirâmides ainda
Lanças ao
mundo rútilos clarões!
Alfredo
Margarido, que sempre procurou demonstrar a importância da emigração na cultura
cabo-verdiana, afastando assim a ideia de uma grande dependência dos
intelectuais cabo-verdianos dos modelos culturais brasileiros e portugueses,
num ensaio dedicado a Pedro Cardoso, referindo-se a este soneto escreve:
“Se o soneto é já, e manter-se-á, uma das
formas poéticas privilegiadas por Pedro Monteiro Cardoso, o tema não
deve nada à poesia portuguesa, como também não deve coisa alguma aos temas
brasileiros. A relação estabelece-se, neste caso, entre Cabo Verde e as formas
culturais e poéticas afro-americanas; o que prova a importância dos Estados
Unidos nas opções culturais, ao mesmo tempo que fornece uma chave para a
compreensão das escolhas ideológicas dos autores cabo-verdianos (Folklore
Cabo-verdiano, edição da Associação Solidariedade Caboverdiana, Paris, 1983)
”.
A temática da emigração para os Estados Unidos, organizada e estruturada pelos próprios cabo-verdianos, desde a construção dos navios até à formação dos seus grandes navegadores, cujo impacto não se limitou à construção de casas ou à compra de terras aos antigos lavradores, permitiu a formação duma nova classe oriunda da emigração e que investiu fundamentalmente na educação das famílias, sendo a maioria dos escritores do Movimento Claridoso (fundado em 1936) oriundos de pais emigrantes. O romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, editado em Paris numa tradução de Michel Laban, revela a vivência dos cabo-verdianos em relação às comunidades cabo-verdianas de New Bedford, no estado de Massachusetts. Jorge Barbosa, o poeta maior da Claridade viaja através da imagem do emigrante que não corta os laços umbilicais com a mamãe terra:
Emigrante
Quando eu puser os pés no vapor que me levará
quando
deitar os olhos para trás
em
derradeiro gesto de desprendimento,
não
chorem por mim.
Levarei
numa pequena mala
entre a
minha roupa amarrotada de emigrante
todos os
meus poemas
– todos
os meus sonhos!
Levarei
as minhas lágrimas comigo
Mas
ninguém as verá
Porque as
deixarei cair pelo caminho
Dentro do
mar.
Levarei
já nos olhos a miragem de outras paisagens
Que me
esperam,
Já no
coração o bater forte
De
emoções que eu pressinto.
E se eu
voltar
Se voltar
para a pobreza da nossa terra,
Tal como
fui,
Humilde e
sem riquezas,
Também
não chorem por mim
Não
tenham pena de mim.
Mas se eu
trouxer esse ar de felicidade
Que fica
a arder na chama de charutos caros
Que
cintila em pedrarias de anéis vistosos
Se
anuncia em risadas ruidosas
E se
garante na abundância das cifras bancárias,
Então chorem por mim
Tenham pena de mim,
Porque a
pequena mala do emigrante que fui,
Com os
meus poemas - os meus sonhos!-
Ficou
esquecida como coisa inútil,
Não sei
em que parte do mundo!
Este poema também tem a preocupação de fazer as chamadas necessárias aos emigrantes que por razões materiais cortam-se com o meio social de origem, vendo tudo sob o prisma da nova situação financeira conquistada, perdendo a sua natureza humilde, a sua simplicidade “sem a preocupação de ser simples”. A emigração, positiva para a América do Norte, é também uma procura de dignidade, de valores mais elevados que os nossos. Eugénio Tavares, na sua carta dirigida a Alexandre d’Almeida que propunha uma emigração para as colónias portuguesas, dizia que o cabo-verdiano não emigra simplesmente por razões mandibulares. As fomes cíclicas permitiam aos roceiros de São Tomé e Príncipe enriquecer com uma mão-de-obra, muitas vezes especializada, a um baixo preço, como também já dizia Sena Barcelos, ilustre bravense, que escreveu a História de Cabo Verde, que aliás precisa de ser reeditada. O poema de Osvaldo Alcântara, heterónimo de Baltasar Lopes, demonstra a passividade de alguns intelectuais face ao drama da fome e da emigração para o Sul (São Tomé e Príncipe e Angola):
Este
poema, muito escutado na voz de Humberto Bettencourt durante a luta de
libertação, deixava claro que os problemas de Cabo Verde não eram uma simples
questão da fome, mas sim de encontrar as vias de libertação para o seu próprio
desenvolvimento político, cultural e antes de tudo espiritual. O facto de Cabo
Verde ter sido descoberto e povoado pelos portugueses não impedia ao povo
cabo-verdiano de escolher o seu próprio caminho se os quinhentos anos da
presença portuguesa não foram suficientes para integrar Cabo Verde em Portugal,
no quadro das Ilhas Adjacentes, em igualdade de direitos com os madeirenses e
açorianos. Gabriel Mariano escreve o poema Premonitório de Sagres, para
denunciar o mito das descobertas, que para uns foi “as glórias do achamento”,
para outros “os sonhos em ampulhetas” - Ovídio Martins.
Premonitório de Sagres
À memória
de Henrique, o Infante, matador de Pedro, seu irmão.
“E sucedeu que, estando eles no
campo, se levantou Caim contra seu irmão
Abel e o matou”. Génesis 4,9
Pois se
de ti venho eu, por longos séculos
De sangue
insuspeitado e desamor,
Quem, sem
me ouvir, te consagrou?
Aqui o
princípio foi de tudo, todavia.
Aqui há
quinhentos anos que nascia
Esta
minha dura e belicosa inquietação.
Oh
dolorosa água transtornada oh solidão,
Oh
inesperadamente frios ventos dos Algarves!
Quem te
nomeou de sacro promontório,
Se de ti
só nos viria luto e opróbrio?
Oh sinal
margoso premonitório...
Aqui o
princípio foi de tudo. E, todavia,
Por cada
proa que aos ventos irrompia
Não era o
mar rumoroso quem gemia
Mas a
terra bem amada e africana.
E
chamaram deles o que deles nunca fora
Se não
fora a bruta força e dementada.
Oh quem
pudera adivinhar, naquela hora,
O
insolidário espérmen, a escravidão futura.
Os ossos de Gabriel Mariano repousam na rua 1, do Cemitério de Mindelo, onde não faltam visitas de amigos e flores vermelhas de caboverdianidade. Um outro poeta, ensaísta e romancista, Luís Romano, ao publicar o romance Famintos, no Brasil, no ano de 1962, que andou de mãos em mãos na clandestinidade dentro do espaço colonial português, abria o romance com um poema que é um apelo à fraternidade entre os povos e que os antifascistas portugueses também utilizaram na luta contra o fascismo e a guerra colonial:
Irmão Branco
Tuas
sementes mortas não poderiam brotar.
Misturaste
meu sangue negro
Na massa
de uma terra que desejaste para ti.
Empunhaste
os membros que te dei
̶̶ Irmão
branco ̶̶
E
extraíste brilhantes do lodaçal onde meus olhos viram a luz.
Dia a dia
construíste
Destruindo
A
sepultura dos teus sonhos.
Hora a
hora inoculaste nas minhas veias
O fel
que amargamente terias de beber.
Só te
resta o mar
̶̶
Contempla-o ̶̶
Nessa
imensidade quiçá
Tens o
concretismo de um símbolo:
A União.
Onde os
teus caprichos de negreiro?
Onde tuas
galeras repletas das minhas vidas que vendeste?
Onde teu
fausto que meus filhos desentranharam desta lama?
Tua
intolerância, tua inconsciência
Onde? ̶̶ Onde?
Acolhi-te
na inocência desta simplicidade
Como uma
criança. Tudo foi teu: meus segredos, meus tesouros,
Meus
filhos, teus escravos,
Meu
corpo, teu tapete.
E esse
deslumbramento foi tua perda.
Nada
viste, nem poderias ver.
Finalmente
só te resta o mar
Símbolo
da União ̶̶
Caminho
que te trouxe e hoje te leva.
Meus
filhos desprezados não te amaram.
Meus
tesouros não poderiam brilhar eternamente na tua fronte.
Tua cor
que tanto defendeste altivamente
Foi tudo
Foi o mal
que não viste
O orgulho
que te separou de mim
E te
destruiu.
Irmão
branco
Escuta-me
neste momento
Ainda é
tempo
Porque te
falo de irmão para irmão.
No
mistério daquilo que nos formou
̶̶ Homens
iguais ̶̶
Considera-me.
Só isso
nos basta.
Só isso
Mas infelizmente não eram somente os africanos que sofriam do regime colonial português. Em muitos casos os portugueses sofriam muito mais que os africanos, se tivermos em conta os rigores do clima e a subnutrição dos trabalhadores e camponeses, obrigados também a sair do país à procura de pão e liberdade. Portugal perdeu mais de um milhão de trabalhadores nos anos sessenta, conseguindo entretanto ainda fazer uma guerra colonial em três frentes. Quem sabe se esse milhão de portugueses dispersos pela Europa, que de europeus somente têm o nome, pois são tão explorados como qualquer outro emigrante, não poderia ter sido enviado para a África, onde não faltava espaço para trabalhar e possibilidades de um sonho maior de criar uma nova sociedade multirracial, participando no desenvolvimento dos respectivos países e na criação de laços fortes de amizade entre Portugal e as ex-colónias. Nos fins dos anos sessenta, face à emigração em massa dos trabalhadores portugueses para a Europa, surge então a ideia de recrutar trabalhadores cabo-verdianos para Portugal. Trabalhadores que sonhavam ir viver num mundo melhor, onde não haveria nem pobres e nem explorados. Surpreendidos com a situação da vida dolorosa dos portugueses, eles participam nas lutas nas fábricas e nas minas, ao lado da classe operária portuguesa. Com o advento do 25 Abril foi-lhes dito que não eram portugueses e que precisavam de se legalizar perante as autoridades portuguesas. Este poema de Arménio Vieira relata a situação dos trabalhadores cabo-verdianos em Portugal nos princípios dos anos setenta:
Lisboa, 1971
A Ovídio Martins e Osvaldo Osório
Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.
Eis-nos
enfim transidos e quase perdidos
No meio de guardas e aviões da Portela.
Em
verdade éramos o gado mais pobre
D’África
trazida àquele lugar
E como
folhas varridas pela vassoura do vento
Nossos paramentos de presunção e de casta
E quando
mais tarde surpreendemos o espanto
Da mulher
que vendia maçãs
E queria
saber d’onde... ao que vínhamos,
Descobrimos
o logro no coração do Império.
Porém o
desencanto, que desce ao peito
E trepa a
montanha,
Necessita
da levedura que o tempo fornece.
E num
camião, por entre caixotes e resquícios da véspera,
Fomos
seguindo nosso destino
Naquela
manhã friorenta e molhada por chuvisco d’inverno.